Em 2012, fiz uma viagem sem muito dinheiro junto com um amigo pela Europa, abusando de hospedagem solidária, comida barata, comida grátis, comida do lixo e de vez em quando comida boa.
Na época, escrevi um diário, agora publicado dia por dia neste blog.
Dia 19 – Hamburgo parece ser muito louco
Apesar de todo o esforço do dia anterior, teríamos pouco tempo em Hamburgo, então acordamos 12h. Banho, fomos pra cozinha comer e conhecemos Phillip, bem gente boa. Rascha falou pro Allan que era dia da parada gay de Hamburgo, a Christopher Day. Ia rolar, de noite, num squat, a festa da esquerda relacionada à parada, então esse era nosso plano pro final do dia. Antes, a idéia era andar pelo bairro e passar no Millerntor[1] pra ver se conseguíamos entrar pra tirar foto. Na varanda da casa, dava pra ver, em frente, o porto de Hamburgo, no rio Elba, o maior da Alemanha. Notamos também na geladeira e pela casa alguns símbolos e bandeiras de Israel. Tema polêmico na Alemanha. Perguntei pro Phillip sobre a Mea e ele disse que não a conhecia, que só conhecia a Sarah. Nós não sabíamos quem era Sarah, então imaginamos que fosse a intermediária entre a Mea e o projekt. Ele disse que ela iria passar na casa de noite pra beber com a Rascha e depois irem pra festa, então a gente voltaria antes pra encontrá-las. Antes de sair, subimos ao quarto andar, de onde teoricamente tinha uma vista legal. Porra nenhuma, só um sapato servindo de vaso nos chamou a atenção.
Tendo a chave da casa, podíamos fazer o rolê que quiséssemos. Liguei pra Mea, que disse que ia nos encontrar na festa a noite, e pro Jonas, outro maluco que nos ofereceu abrigo. Ele tava numa loja punk mais pro sul da cidade, acho que era inauguração, e ia rolar um show lá. Ficamos de pensar se íamos, porque era perto da hora da festa. Andando pelo bairro de memória baseando-nos no dia anterior, me lembrei da Boca, em Buenos Aires. Pela proximidade com o porto, formato das ruas, bairro popular, com um time de futebol bem incrustado no cotidiano – tem símbolo do St. Pauli em tudo que é loja. Meio Juventus da Mooca também. Confesso que achei que o St. Pauli era bem mais modinha. Não, o clube pulsa no coração do bairro mesmo. Do lado do Millerntor tem um parque de diversões, e com isso e mais a parada gay e mais a Reeperbahn, que é a rua da luz vermelha e de comércio, tinha bastante gente na rua.
Avistamos o estádio e quando nos encaminhávamos pra lá começou a chover. Paramos num bar e tomamos uma Astra, cerveja que já patrocinou o St. Pauli. Boa até. A chuva parou e seguimos caminho, encontrando ali do lado o Kinderladen MAFALDA. Claro que tirei foto, jardim de infância da Mafalda em Hamburgo em frente ao estádio do St. Pauli? Isso chama MÍSTICA. O pedagogo Allan já tá querendo ir trabalhar lá. Antes de chegar ao estádio começou a chuva de novo, então nos abrigamos na entrada de um hotel, em frente ao estádio. Parou de novo de chover (SP feelings) e atravessamos pra dar de frente com o Millerntor, que como todo estádio no meio de um bairro não parece tanto um estádio. Não tinha como entrar, então tiramos foto e, com medo de mais chuva, entramos na fanshop do clube, ao lado da porta principal.
Tem TUDO do St. Pauli pra vender, de chupeta pra criança a tigela de ração pra cachorro. Camisas antinazi a rodo. Como nos alertou Stefan no dia anterior, tudo salgado pra cacete. Olhamos uma pá de coisa, tentação do capeta, e eu acabei comprando duas bandeiras do St. Pauli pra colocar na Mafalda por 13 euros e um livro de fotos animal, enorme, com dois CDs com músicas do St. Pauli por 40 euros. Caro, mas valeu a pena, acho. Allan achou uma calcinha do St. Pauli sem aqueles detectores que apitam na saída e levou de presente. Custava 20 euros essa porra, shoplifiting da loja salgada do St. Pauli pode sim senhor. A atendente nos disse que no dia seguinte tinha excursão guiada no estádio, 9,95 euros, segundo ela o único jeito de entrar. Tomar no cu né? Mais caro que ingresso pra jogo! Pensamos em passar lá no dia seguinte e pedir só pra tirar foto.
Na saída, nossa idéia era encontrar o Jonas, mas com o tamanho do livro resolvemos voltar em casa pra deixar o peso lá. Na chegada conhecemos Isabel, namorada do Phillip que acabou de se mudar pra Hamburgo. O Allan cozinhou um nhoque pré-pronto com molho de tomate (não era Dolmio!) e cogumelos, falei com uma amiga no GTalk e ela me pediu pra comprar uma camisa do St. Pauli pro namorado. Rascha apareceu e trocamos uma idéia, ela é meio que fanática por coisas japonesas, tipo mangá e bandas bizarras hehe. Comeu conosco e se foi. Saímos também, tendo olhado no mapa um caminho mais curto até o Millerntor.
Nessa do caminho mais curto, pegamos a Reeperbahn e sem querer achamos OUTRA fan shop do St. Pauli, essa maior. Tava rolando um Fan Kultur Day[2], com tatuagens, bingo e 20% de desconto em quase tudo – menos os livros. Comprei a camisa pro namorado da minha amiga (que de 150 reais saiu por 120) e uma bola do St. Pauli imitando bola antigona[3] (saiu 60 reais com o desconto). Ainda achamos três cintos sem dispositivo de dedo-duro e um par de meiões. Tudo nosso, ainda mais com a loja cheia. Eu precisava mesmo de um cinto, minha calça tava caindo. Uma banda tava se preparando pra tocar, mas resolvemos sair fora e ir até a estação central – Hauptbanhof – ver o esquema do bilhete amigão (hehe) alemão, 40 euros e tu pega quantos trens quiser por um dia. Só no fim de semana, e só nos trens mais lentos e com mais paradas, mas pra chegar em Regensburg era o que dava pro nosso bolso.
Na Hauptbanhof, tentamos comprar o bilhete na máquina automática mas ficamos em dúvida sobre a possibilidade de fazer Hamburgo – Regensburg com ele. Nisso chegou um senhor de idade pedindo grana, que falava uma pá de língua – entre elas português, PERFEITO. Foda pensar como uma pessoa com esses conhecimentos acaba na rua, mesmo na Alemanha com seus 4545435435 amparos governamentais. Se pá é opção, quando distribuíamos comida embaixo do Minhocão em 1999/2000 tinha gente que estava ali por opção[4]. Entramos na fila de informação e a atendente nos imprimiu o trajeto possível com o bilhete amigão saindo o mais tarde possível de Hamburgo – 11h50 da manhã, pra chegar em Regensburg 23h32. Quase 12h de viagem num trajeto de 5h, mas era o jeito. Não compramos o bilhete, pensando que de repente na festa podíamos encontrar alguma carona.
Desistimos do Jonas e na volta pra casa passamos no mercado pra comprar refri de 2 litros por 39 CENTAVOS, chocolate pelo mesmo preço. Encontramos lá também um delicioso MILKA COM PIPOCA. Não, não é um chocolate e um saquinho de pipoca junto, é um chocolate com RECHEIO de pipoca. Pensamos em levar pro Gabriel Von Ter Burger[5], mas ia derreter na mala. Na fila pra pagar, Allan foi falar alguma coisa do Snickers apontando pra ele e sem querer fez propaganda, levando o alemão da nossa frente a comprar um. Porra Allan, tanto shoplifting pra no final isso? Seu ex-punk de merda. Ainda passamos numa loja de souvenirs pra comprar lembrancinhas pros rommates (surpresaaaaaa) e um SUPERTRUNFO DE DITADORES, hahahaha. Não, não tem o Stalinioca[6], seus merdas.
Dali até o projetk deu pra notar que St. Pauli é mesmo o distrito da luz vermelha. Muita casa de show, pra todos os gostos, explicitamente anunciados. Trombamos também com algumas pessoas vindo da Christopher Day, com fantasias bizarras. Vimos uma casa de shows exclusivamente de travestis. Imaginamos que deve ter outras com outros recortes específicos. Chegamos em casa e a Rascha disse que sairíamos em 30 minutos pra encontrar a Sarah e ir de bike pra festa. Falei pra ela do trem, que o trajeto mais curto era de 5h, e ela exclamou:
– 5 horas?! Pra onde vocês vão, pra Bavária?
– Exatamente – respondi.
Demos uma olhadinha na internet, Rascha se montou (hehe), pegamos as bikes que ela emprestou (na garagem do projekt tinha umas 50 bikes), empurramos até a estação de metrô onde tava a bike dela, e ficamos na esquina de um pub esperando a Sarah. Ali a Rascha nos apresentou o Club-Mate, que é um mate com gás que eles adoram por aqui, gostosinho até. Misturam com vodka e umas outras coisas. O logo tem um maluco de chapéu que parece a máscara do V de Vingança. Sarah não chegava, então ligamos pra ela e encontramos ela um quarteirão pra frente. Ela chegou e nos disse:
– Prazer, sou a Sarah, também conhecida no mundo virtual como Mea.
Tava desfeito o mistério. Fomos até o trampo dela pegar a bike dela – ela é guia turística do bairro – e paramos pra comer batata-frita. Muita gente na rua. SP feelings outra vez. A tiazinha da batata-frita, uns 60 anos nas costas, cabelo de 3 cores diferentes. Aqui ser estranho é ser “normal”. Trocamos uma idéia com Sarah/Mea e Rascha, elas já foram pro Japão, piram em Tóquio, e a Sarah pensa em ir pro Chile ano que vem. Bem gente boa, as duas na real. Acabamos de comer e passaram três amigas delas de bike que iam pra festa, as quais nunca nos foram propriamente apresentadas. Não sei o nome de nenhuma. Continuamos empurrando as bikes até a esquina seguinte – levamos elas pra passear, hahaha – e depois de parar brevemente as meninas resolveram ir logo pro Flora, squat onde rolaria a festa.
Pensa numa fábrica de três andares abandonada. O squat é isso. ENORME, três pistas. Uma fila de 20 minutos pra entrar no lugar. Na entrada, um cara ofereceu (quis vender) drogas pro Allan, que nem quis. O preço da balada era 5 euros, mas podia falar que tava sem grana. Juntei minhas moedas e dei, 4 e pouco. Allan entrou sem nada, firmeza demais o lugar. Lá dentro, fui tirar foto e Sarah/Mea disse, “no photos”. Elas tavam bebendo uma mistura de pró-seco (assim que escreve?), que aqui é muito barato, com club-mate, e o Allan, mais que eu, foi no embalo. O barato era uma balada mesmo, eletro tocando, e pra dançar eu preciso de cerveja, hehe. Comprei uma, 2 euros, devolvendo a garrafa fica 1,70, e assim fui até a quarta. Suficiente pra desinibir e mexer os ossos de forma atabalhoada e ridícula – mas na Alemanha tudo bem porque todo mundo faz isso de forma atabalhoada e ridícula. Mandioca dançando Britney Spears. Pois é, olhaí. Mas o Allan não ficou atrás, despirocando loucamente.
Depois de um tempo, dançando com as meninas bem animadas e suas amigas sem nome (uma delas, a mais “bonitinha” (?), era a menos simpática, e dançava bem engraçado; duas tinham piercing no lábio, pra minha tentação hehe), enchemos o saco e fomos ver as outras pistas. Na de baixo, mais do mesmo. Na de cima, rock hypezinho. Fui buscar a terceira cerveja e acabamos Allan, Rascha e eu falando sobre o squat. Ela me disse que ninguém mora lá, e que rolam exposições, debates, shows, etc. Eu já tinha falado pro Allan que me lembrava da Casa Mafalda (só que MUITO maior), agora ainda mais. Disse também que rola uma reunião semanal pra organizar o squat e que tem um grupo que os amigos dela participam que trata de anti-semitismo – daí os símbolos pró-Israel na casa dela. Entramos nesse tema meio polêmico (o pai dela é palestino e segundo ela odeia judeus), e eu disse que meu problema não é com os judeus, e sim com os estados. O estado de Israel é opressor e assassino, o maior comprador de armas dos EUA. Ela disse que é assim porque são atacados, e eu que são atacados porque invadiram a terra alheia. Ela disse que eles precisavam porque nunca tiveram sua própria terra (mentira, mas nem entrei nisso), e eu disse que se isso justificar então os palestinos podem fazer o mesmo em outras terras de outros povos, é isso? Nesse ponto a conversa ficou meio sem rumo, ela disse que todo mundo fala de Israel como se fosse o único estado que faz isso e que existe um anti-semitismo de segunda onda, além de falar que os alemães sempre são lembrados pelo Holocausto e que por isso acabam sendo pró-Israel, pra tentar tirar isso de cima deles, e eu repeti que meu problema é com os estados, seja o de Israel com os palestinos, a Turquia com os curdos, o Brasil com os povos indígenas. Falei ainda que imagino que deve ser complicado ser alemão e ir pra outro país e ser maltratado por conta do Holocausto mesmo sem ter nada a ver com isso, e mudamos de assunto definitivamente.
Perto do bar ainda vi uma bandeira das Mujeres Sin Fronteras e um cartaz pedindo ajuda financeira pra ajudar uma organização de São Petersburgo chamada Coming Out, que auxilia gays que saíram do armário – imagina sair do armário em São Petersburgo, antigamente conhecida como Stalingrado. Vi ainda uma pixação escrito “Ohmo”, e fiquei brisando com o Allan que o H “escondido” dá uma boa interpretação e pode dar uma boa letra sobre o assunto ou ainda um nome de banda, hehe. No banheiro, tinha também um pixo no mictório escrito “Piss on a nazi”, hehe. Esse, tive que burlar o pedido da Mea e tirar uma foto.
No geral, muito pouca pegação. Os alemães e alemãs realmente são devagar com isso. Em nenhum lugar que fomos vimos muitos casais se pegando. Lá pelas 2h30, depois de ver um outro brasileiro xavecar uma menina de 17 anos sem muito sucesso (pelo menos rendeu ela passar um baseado pra nós), fomos embora com a Rascha. Sarah tinha desaparecido. Voltando de bike do rolê, passamos por uns alemães bêbados que tentaram parar a Rascha e conseguiram parar Allan e eu. O cara falou algo comigo em alemão, eu disse que não falava alemão, e seguiu-se o seguinte diálogo:
– You look a little bit funny.
– Thanks – respondi.
– 20 euro to pass.
– No – e fui embora.
Como assim, a little bit funny? Eu sou completamente funny, porra. Doug Funnie, diria o Davi – o que faz do Allan o Costelinha, mesmo ele insistindo pra ser o Skitter.
Antes de dormir ainda olhamos de novo por uma carona pra Regensburg no Carpooling.co e… ACHAMOS! Por 20 euros (o mesmo que daria o trem), saindo segunda 10h da manhã. Por conta do horário, não deu pra ligar pro cara, então mandamos SMS. Ele não respondeu, então fomos dormir pensando em ligar de manhã logo cedo, e caso ele não atendesse a gente partia pro trem. Capotei na cama enquanto o Allan ficou no Facebook – ele tá com saudadinha de casa e da namorada.
Hamburgo parece ser muito louco – pena que tivemos tão pouco tempo pra conhecer. Espero que a carona saia, se bem que um dia a mais apenas não vai adiantar tanto. Teremos que voltar… até pra ver o St. Pauli jogar em casa[7], hehehe.
[1] Estádio do FC St. Pauli.
[2] Dia da cultura torcedora – uma desculpa pro consumismo.
[3] Tenho até hoje!
[4] Muitas aspas nessa “opção”. Tem tanto atravessamento nisso que nem sei se dá mesmo pra usar essa palavra.
[5] Nosso roommate, cujo sobrenome não era esse, essa era a zoeira porque ele dizia “torcer” pro Bayern de Munique.
[6] Quem organiza as coisas sempre se fode né.
[7] Rolou pra mim, dois anos depois. E foi muito louco, parecia um jogo de futebol dentro de um show punk. Mas essa é uma outra história.