Um dos únicos lugares que temos frequentado aqui em casa no último ano é o supermercado. Invariavelmente, tem gente na porta, gente que vive na rua e é obrigada o tempo todo a submeter a dignidade à sobrevivência.
Em uma das últimas vezes, minha companheira foi sozinha. E ouviu o pedido por uma bolacha.
Nós nunca negamos esses pedidos. Podemos comprar algo a mais, então por que não? Não nos faz heróis, nem resolve o problema da fome, mas permite àquela pessoa comer, ainda que pouco, ainda que insuficiente.
Minha companheira fez as nossas compras e adicionou a bolacha, um bolo e um suco. Quando entregou a sacola, ouviu uma frase, acompanhada de um olhar de surpresa, que grudou na cabeça dela, depois na minha e agora ofereço a você:-
– É tudo pra mim?
Hoje almocei cedo, porque nas últimas duas semanas sou obrigado a sair de casa, pegar uma hora de trem, mais quinze minutos de caminhada, para dar uma aula de cinquenta minutos presencial para dez alunos, enquanto manejo a câmera e o computador para que os outros trinta me vejam pela tela.
O tal do ensino híbrido.
Depois dessa aula, eu tenho um intervalo de uma hora e cinco minutos, e na sequência mais duas aulas de cinquenta minutos completamente remotas. O intervalo é insuficiente para voltar para casa de trem. Ficar na escola significa ter que pegar o trem das seis e meia da tarde, fazer baldeação em uma das estações mais lotadas da cidade. Resolvi então voltar, ainda no intervalo, usando um carro de aplicativo.
O horário de chegada que o aplicativo me deu era três minutos antes da primeira das duas aulas. No caminho, vim fazendo as contas, ou melhor, confirmando: o valor da viagem era maior do que a hora-aula que eu tinha acabado de dar – sem contar a passagem de trem. Perto de casa, o trânsito parou, o que significava atraso do professor, inadmissível já que eu poderia ter ficado na escola. Então, enquanto orientava o motorista a fazer outro caminho, conectei na plataforma pelo celular para começar a aula ali mesmo.
No desvio feito pelo carro, passei em frente ao mercado. Do lado da porta, um homem sentado, talvez o mesmo que fez a pergunta para a minha companheira, talvez outro. Aqueles segundos de passagem me fizeram colocar o que eu sentia, que eu não sei bem nomear, em perspectiva – afinal, por pior que fosse a minha situação, eu não conheço a fome. Mas o barulho do pedido de autorização de mais um estudante para entrar na sala de aula virtual me trouxe de volta para o celular.
Entrei em casa literalmente correndo. Minha companheira tinha passado um café e enchido minha garrafa de água, e sentiu um perfume estranho em mim: provavelmente um odorizante do carro, que eu não havia notado por conta das duas máscaras. O cheiro era forte e enjoativo. Tirei as máscaras rapidamente, lavei as mãos e o rosto e sentei em frente ao computador. Meu atraso tinha sido de três minutos mais do que os cinco que costumo dar de tolerância para que a turma entre na sala. Abri o microfone, a câmera, me percebi completamente descabelado, e comecei a aula pela mesma pergunta que tinha feito na aula presencial, exatamente duas horas antes:
– O que é uma cidade?
Nos últimos meses, tenho pensado muito sobre o trabalho. Não o meu emprego, ou melhor, os meus empregos, mas o trabalho, o ato de transformar a natureza com o objetivo de facilitar a vida humana. A forma como valoramos isso, e como desvalorizamos alguns tipos de trabalho, mais ou menos aqui ou ali, de acordo com onde estamos.
Hoje olhei para a minha própria pergunta, o que é uma cidade, e dei de cara com a questão impossível do homem na porta do mercado. E percebi que quanto mais eu envelheço, menos eu entendo, a cidade, o trabalho, a vida e, principalmente, os valores de cada uma dessas coisas.
Tomara que esse cheiro saia com um banho.